Hora literária – veja 5 poemas de Ferreira Gullar
Mergulhe na sensibilidade e profundidade de um dos maiores poetas brasileiros.

A poesia tem o poder de transformar sentimentos e refletir a essência da vida em versos marcantes; Ferreira Gullar, um dos maiores poetas brasileiros, soube explorar essa força com sensibilidade e profundidade. Suas obras transitam entre o lirismo e o engajamento social, cativando leitores de diferentes gerações. No Hora Literária de hoje, selecionamos cinco poemas desse mestre da palavra para você conhecer e se emocionar.
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Ferreira Gullar – sua trajetória na literatura
Um dos maiores nomes da literatura brasileira contemporânea, Ferreira Gullar, pseudônimo de José Ribamar Ferreira, iniciou sua jornada literária na década de 1940, em sua cidade natal, São Luís, no Maranhão. Ao longo dos anos, consolidou-se não apenas como poeta, mas também como crítico de arte, ensaísta e tradutor. Em 1951, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se envolveu ativamente com o cenário cultural da época, participando da fundação do movimento neoconcreto e contribuindo para jornais e revistas de grande circulação.
A poesia de Gullar sempre teve um forte viés político e social, funcionando como um reflexo das inquietações e desafios enfrentados pelo povo brasileiro. Seu compromisso com a realidade nacional tornou-se ainda mais evidente a partir da década de 60, quando se afastou das tendências vanguardistas e aderiu ao Centro Popular de Cultura (CPC), um movimento de intelectuais de esquerda que defendia uma arte acessível, engajada e voltada para a conscientização popular. Ainda que, mais tarde, tenha revisto algumas de suas posturas ideológicas, sua obra permaneceu profundamente marcada pela crítica social e pela busca por justiça.
Durante a Ditadura Militar, Ferreira Gullar foi perseguido por suas convicções políticas e precisou se exilar, vivendo em países como Argentina, Chile e Peru. Esse período de repressão e exílio impactou profundamente sua produção poética, intensificando os dilemas e conflitos expressos em seus versos. Seu retorno ao Brasil só aconteceu em 1977, após a publicação do emblemático “Poema Sujo”, escrito durante seu tempo fora do país e considerado um de seus trabalhos mais potentes.
O reconhecimento de sua contribuição literária veio de forma mais expressiva a partir da década de 1990, quando recebeu alguns dos mais prestigiados prêmios literários do Brasil. Em 2014, aos 84 anos, Ferreira Gullar foi eleito para a Academia Brasileira de Letras (ABL), ocupando a Cadeira 37, que anteriormente pertencera ao escritor Ivan Junqueira. Seu legado permanece vivo, não apenas como um dos grandes expoentes da poesia brasileira, mas também como uma voz que ressoou em defesa da arte como instrumento de transformação social.
Vamos de poemas?
Traduzir-se
Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.Traduzir-se uma parte
na outra parte
– que é uma questão
de vida ou morte –
será arte?Não há vagas
O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pãoO funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras– porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preçoO poema, senhores,
não fede
nem cheiraPoemas Neoconcretos I
mar azul
mar azul marco azul
mar azul marco azul barco azul
mar azul marco azul barco azul arco azul
mar azul marco azul barco azul arco azul ar azul”
No corpo
De que vale tentar reconstruir com palavras
O que o verão levou
Entre nuvens e risos
Junto com o jornal velho pelos aresO sonho na boca, o incêndio na cama,
o apelo da noite
Agora são apenas esta
contração (este clarão)
do maxilar dentro do rosto.A poesia é o presente.
Aprendizado
Do mesmo modo que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda
deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize
toda ilusãoque a vida só consome
o que a alimenta.