Literatura em dia: “Sagarana”, de Guimarães Rosa
Uma obra que combina o regionalismo do sertão mineiro com temas universais, narrativas épicas e linguagem poética.
“Sagarana”, o primeiro livro de João Guimarães Rosa, foi publicado em 1946. A obra explora temas universais como a violência e o confronto entre o bem e o mal, mas também possui um forte caráter regionalista. O título é um neologismo que combina “saga”, de origem germânica (sagen), com “rana”, termo da língua tupi.
Leia também: Graciliano Ramos na prosa: uma reflexão sobre sua engenhosidade
A coletânea inclui nove contos: “O burrinho pedrês”, “Traços biográficos de Lalino Salãthiel ou A volta do marido pródigo”, “Sarapalha”, “Duelo”, “Minha gente”, “São Marcos”, “Corpo fechado”, “Conversa de bois” e “A hora e vez de Augusto Matraga”. O autor nasceu em Cordisburgo, Minas Gerais, em 27 de junho de 1908, e faleceu no Rio de Janeiro em 19 de novembro de 1967, apenas três dias depois de tomar posse na Academia Brasileira de Letras. Sua obra mais conhecida é o romance “Grande sertão: veredas”, publicado em 1956. Inserido na terceira fase do modernismo, também chamada de pós-modernismo, o escritor produziu a coletânea de contos “Sagarana” durante um período historicamente tumultuado: a Era Vargas.
“Sagarana”, de Guimarães Rosa
“Sagarana” é uma coletânea de contos de João Guimarães Rosa, publicada pela primeira vez em 1946, mas que já havia conquistado o segundo lugar no Concurso Humberto de Campos em 1938, quando ainda não havia sido lançada. Apesar de seu evidente regionalismo, típico das obras de Rosa, “Sagarana” explora temas de apelo universal. Essa característica de mesclar o local com o universal pode ser percebida já no título, que combina “saga” (do alemão “sagen”) com “rana” (palavra de origem tupi), criando um termo híbrido.
A obra é permeada por um regionalismo que capta as especificidades do sertão mineiro, incorporando aspectos geográficos e culturais que moldam a identidade de seus habitantes. A partir desse cenário e dessa cultura, Guimarães Rosa constrói uma ficção que, embora ancorada em uma região particular, aborda temas que se tornam compreensíveis em qualquer parte do mundo. Elementos que poderiam ser vistos como restritos ao contexto brasileiro ganham, em sua narrativa, um tom de universalidade.
A universalidade, nesse caso, está justamente na capacidade de transcender o local e o específico, explorando questões que ressoam em diferentes nações e épocas. Um exemplo é o conto “A hora e vez de Augusto Matraga”, em que o personagem central vive o embate entre o bem e o mal. Esse conflito entre forças antagônicas é um tema humano e atemporal, presente em sociedades ao redor do globo e que, por sua universalidade, se mantém relevante ao longo das gerações.
Outra característica marcante da obra é o uso da linguagem coloquial, que reflete a fala dos personagens e dá um tom poético e singular à vida dos sertanejos. Através desse recurso, Guimarães Rosa evidencia a riqueza imaginativa do povo do sertão, que transforma a linguagem em um elemento lírico e identitário. O trabalho com a linguagem demonstra o poder de expressão do sertanejo, que domina sua língua com uma criatividade própria.
Esse lirismo, contudo, convive com o tema da violência, um traço tanto regional quanto universal. Rosa explora o aspecto primitivo e bruto da natureza humana, evidenciando a luta pela sobrevivência em condições adversas. Em um contexto patriarcal, onde a força bruta muitas vezes dita as relações, alguns personagens masculinos buscam afirmar sua autoridade, associando poder à violência, uma abordagem que ressalta o lado mais animalesco e instintivo da condição humana.
Por fim, a coletânea de contos é dividida em nove histórias, cada uma configurada como uma “sagarana”, termo que alude a narrativas lendárias e reforça o aspecto épico dos personagens. O título, que é um neologismo, confere um tom heroico e poético aos protagonistas, transformando o livro em um marco da literatura modernista (ou pós-modernista) brasileira, cujo alcance ultrapassa o tempo e o espaço, consolidando sua relevância literária.